Herculano
Pires, um nome a ser sempre lembrado no meio espírita, grande e profundo
estudioso da Doutrina, combateu de forma veemente as fraudes e demais embustes
levados a feitos por aqueles que se diziam espíritas. De caráter irrepreensível,
legou-nos alertas memoráveis que infelizmente vem sendo deixados de lado pelos
detratores que tanto combateu no meio espírita. Adepto de um Espiritismo que
respeitasse a Codificação foi um dos maiores estudiosos de Kardec. Sempre vale
a pena relembrar os seus alertas, visto que, a deturpação do Espiritismo não é
um fato acontecido apenas em seu tempo. Um grande defensor da causa espírita e
no dizer de Deolindo Amorim, “Temos nele, sem exagero, um dos mais positivos
padrões morais e intelectuais do movimento espírita brasileiro (...)”.
No
texto abaixo, retirado de uma de suas obras, a explicação lúcida sobre o
trabalho na casa espírita que merece ser lido, relido e refletido
principalmente por aqueles que se julgam trabalhadores da seara espírita.
O CENTRO E A COMUNIDADE
“O
centro Espírita não surge arbitrariamente, nem por determinação de alguma
instituição superior do movimento doutrinário. Ele é sempre o produto
espontâneo de uma comunidade espírita que se formou num bairro, numa vila ou
numa cidade. Essa comunidade é sempre extremamente heterogênea, formada por
espíritas e simpatizantes da Doutrina, membros de correntes espiritualistas
diversas e de religiosos indecisos ou insatisfeitos com as seitas que se
filiaram ou que pertencem por tradição familial. Há, porém, um denominador
comum para essa mistura: o interesse pelo Espiritismo. Esse interesse, por sua
vez, decorre de vários motivos, entre os quais predominam as ocorrências de
fatos mediúnicos nas famílias, geralmente em formas de perturbações psíquicas.
Dessa maneira, os fundadores do Centro e seus auxiliares enfrentam desde o
início muitos problemas e dificuldades. Ë necessária a presença de uma pessoa
que tenha conhecimento doutrinários e experiência da prática mediúnica, para
que o Centro não fracasse nos seus primeiros meses de existência. Não havendo
no grupo fundador uma pessoa nessas condições, é necessário recorrer-se a
pessoas de Centro das proximidades, que sempre atendem de boa vontade. O
Espiritismo não é proselitista, não entra na disputa sectária de adeptos das
religiões, mas devem os espíritas, necessariamente, interessar-se pelos que se
interessam pela Doutrina. Esclarecer e orientar sempre é dever espírita.
O
conhecimento dos problemas mediúnicos exige estudo incessante das obras básicas
de Allan Kardec, particularmente estudos permanentes do Livro dos Médiuns e
leitura metódica da Revista Espírita de Kardec, em que os leitores encontram,
além de numerosas instruções, relatos de fatos e observações de pesquisas que
muito ajudam no trato de problemas atuais. Sem estudo constante da Doutrina não
se faz Espiritismo, cria-se apenas uma rotina de trabalhos práticos que dão a
ilusão de eficiência. Estudo e pesquisa, observação constante dos fatos,
análise das mensagens recebidas, observação dos médiuns, exigência de educação
mediúnica, com advertências constantes para que os médiuns aprendam a se
controlarem, não se deixando levar pelos impulsos recebidos das entidades
comunicantes – esse é o preço de trabalhos mediúnicos eficazes. Mas, acima de
tudo e antes de tudo: humildade. Porque Espiritismo sem humildade é água
poluída, cheia dos germes da pretensão, da vaidade, do orgulho que atraem os
espíritos inferiores. Um presidente de Centro não é Presidente da República e
um doutrinador não é um sábio. Pelo contrário, são criaturas necessitadas, que
estão aprendendo a arte difícil de servir e não a de baixar decretos, dar
ordens e humilhar os outros em públicos. Sem humildade, que gera e sustenta o
amor ao próximo, nem o estudo pode dar frutos. Por outro lado, sem estudo os
frutos da humildade não produzem amor, mas fingimento, hipocrisia de maneira e
fala melosa, de voz impostada para imitar anjos.
O
Espiritismo é natural e exige naturalidade dos que pretende vivê-lo no
dia-a-dia, em relação natural e simples com o próximo. Os maneirismos, as
modulações artificiais da voz, os excessos de gentileza mundana e tudo quanto
representa artifício de refinamento social, deformando a natureza humana a
pretexto de aprimorá-la, não encontraram aceitação nos meios verdadeiramente
espíritas. Algumas instituições começaram a adotar, há alguns anos, treinamento
de voz e de gesticulação para jovens espíritas. Alguns Centros aderiram e essas
encenações, estimulados por mensagens espirituais que aconselham brandura e
bondade no trato com a semelhantes. Espíritos ainda apegados aos formalismos
religiosos do passado chegaram a recomendar modismos nesse sentido. Nem Jesus
nem Kardec se utilizaram nem recomendaram essas imitações da hipocrisia
farisaica. O que o Espiritismo objetiva é a transformação interior das
criaturas, para que se tornam mais esclarecidas e com isso, dotadas de mente
mais arejada e coração mais puro. No Centro Espírita devemos manter a mais
plena naturalidade de comportamento, dentro das normas naturais do respeito
humano. As modificações exteriores, precisamente por serem forçadas e portanto
mentirosas, não exercem nenhuma influência em nosso interior. O contrário é que
vale: quem exercitar-se na prática das boas ações, da verdade e da sinceridade,
modificará sem querer e perceber o seu comportamento, sem nenhum dos sintomas
desagradáveis de fingimento e hipocrisia. O Espiritismo, que nos foi legado pelo
Cristo através do Espírito da Verdade, não pode adotar os expedientes da
mentira. O Centro Espírita tem mais com que se preocupar, do que com essas
repetições de um longo passado de traições e perfídia, em que sacerdotes
treinados nos gestos e expressões de piedade, mandavam queimar vivos os seus
semelhantes em nome do Cristo.
A
facilidade com que a maioria das pessoas aceita livros de evidente
mistificação, como os Evangelhos de Roustaing, as obras de Ramatis, e tantas
outras, eivadas de contradições e de passagens ridículas, destinadas
especialmente a ridicularizar a Doutrina, provém dos milênios de sujeição das
massas à mistificação clerical. No Espiritismo não objetivamos o domínio do
mundo por nenhuma forma igrejeira, através de engodos demagógicos, mas
unicamente o esclarecimento das criaturas para que a Terra se eleve em suas
condições morais e espirituais. O sistema igrejeiro de adulação aos médiuns, no
desejo de obter as suas graças, é outra raiz amarga que nos vem do passado
religioso, mas que não deve ser cultivado no Centro Espírita. O médium adulado,
louvado a todo instante, cercado de admiradores como um cantor popular, artista
de novela de tv ou jogador de futebol, acaba perdendo a sua naturalidade,
recorrendo a expedientes ridículos para conservar o seu prestígio e geralmente
chega em falência ao fim da sua missão. Os exemplos são muitos e dolorosos, no
mundo inteiro. Essa situação constrangedora coloca o Espiritismo em pé de
igualdade com as religiões formalista, deturpando-lhe a imagem real. Médiuns,
expositores e escritores espíritas não são luminares nem santos, mas criaturas
falíveis que podem também cair a qualquer instante de seus falsos pedestais.
Devemos respeitar naturalmente a essas criaturas como nossos irmãos dedicados à
Doutrina ( quando não a traem em favor de suas opiniões pessoais ) sim devemos
respeita-los e louvar os seus esforços, mas sem cairmos no exagero de
idolatrias beatas.
O
conceito de mediunidade que vigora entre nós, na maioria esmagadora dos
Centros, é espantosamente ambivalente e portanto contraditória. Afirma-se ao
mesmo tempo que a mediunidade é uma graça e uma provação, , que os médiuns são
espíritos grandemente faltosos, não obstante adorados como enviados de Deus. Os
que estudam seriamente a Doutrina logo percebem a falsidade desse conceito. A
mediunidade é uma faculdade natural da espécie humana, como todas as demais
faculdades. Toda criatura humana é naturalmente dotada de mediunidade. Kardec
observou a existência da mediunidade generalizada. Mas a mediunidade
manifesta-se nas criaturas em diferentes graus de desenvolvimento. Todos somos
médiuns, todos possuímos o que hoje se chama de percepção extrassensorial,
segundo a terminologia parapsicológica. Ë natural que os que revelam graus mais
intensos de mediunidade, prestando-se por isso a trabalhos mediúnicos, sejam
especificamente designados como médiuns, da mesma maneira por que todos
possuímos inteligência, mas só os que possuem em grau excepcional são
designados como “uma inteligência “,merecendo os louvores e o respeito dos que
não atingiram esse grau.
Os
médiuns são os elementos principais da ligação do Centro Espírita com a
comunidade social do bairro ou da cidade. São mesmo com os elos genésicos dessa
ligação. Suas faculdades mediúnicas exercem atração natural sobre a comunidade
e os serviços que prestam no Centro ou nos atendimentos eventuais, fora dele,
ampliam a simpatia popular pelo Centro. Essa função do médium é natural e
inconsciente. Partes integrantes da comunidade, vivendo no meio do povo como
povo, sem nenhum título especial que os separe da massa, quanto mais simples e
despretensiosos eles forem, mais eficientes serão na sua função espontânea de
elos. Quando o médium é pedante, pretensiosos, contador de vantagens, sabereta,
arrogante, essas antivirtudes o transformam em elemento negativo na dinâmica
social. Por isso o médium deve compreender bem a sua condição de criatura
normal integrada no povo e não de elemento excepcional , dotado de poderes
divinos ou convencido de possuí-los. Os dirigentes do Centro podem reforçar ou
enfraquecer as ligações deste com a comunidade. Basta um presidente arrogante,
sempre disposto a criticar e humilhar os adeptos de seitas existentes na
comunidade, para que os elos estabelecidos pelos médiuns sejam rompidos. Atacar
religiões e práticas religiosas dos outros é o meio mais fácil de afastalos do
Centro. Essa crítica pode e deve ser feita em termos de comparação histórica,
nas reuniões especiais de estudo doutrinário, com ampla liberdade de discussão
a respeito, reconhecendo-se a existência dos fatores temporais que no passado,
foram benéficos à solução espiritual dos homens, tornando-se mais tarde
prejudiciais ao esclarecimento espiritual do povo. Mesmo assim, é conveniente
evitar exageros, para que essas debates elucidativos não se transformem em
pedra de tropeço para as pessoas simples e de boa-fé. Em todas as atividades do
Centro deve prevalecer o princípio de amor e respeito ao próximo, não para
atrair simpatias, mas, para não causar aborrecimento e prevenções nas pessoas
que desejam adquirir conhecimentos renovadores.
O
Centro Espírita não é um instrumento de conversões, mas também não pode ser um
instrumento de dissensões. O Espiritismo não quer impor-se aos outros, mas
ajudar e esclarecer os que o procuram. Se existirem na comunidade elementos,
desses que fazem de cada espírita um diabo disfarçado em gente, um instrumento
do diabo para enganar as almas, o centro não deve aceitar as sua provocações
negativas. Essas pessoas, geralmente exaltadas e insolentes, são vítimas de seu
próprio temperamento e também das deformações sectárias do Cristianismo e das
épocas de fanatismo, maldições, excomunhões e perseguições, que embora
distantes, ainda permanecem no inconsciente de muitas criaturas, forçando-as a
atitudes anticristãs e ridículas. Hoje os tempos são outros e o Centro Espírita
pode responder a essas agressões – como fazia Kardec – não com revides
violentos, mas com esclarecimento serenos e fraternos.
Mas
temos de vigiar a nossa tolerância, para não cairmos no charco da hipocrisia,
no fingimento de uma bondade que não possuímos. A regra de comportamento
espírita deve ser a de Jesus: “mansos como as pombas, prudentes como as
serpentes”. O Centro Espírita guarda em seu seio as colheitas da Verdade e
precisa defendê-las, mantê-las puras e vivas, para com elas saciar a fome do mundo.
Jesus imolou-se por essa colheita de sua própria semeadura, mas enquanto foi
necessário defender a seara manteve atitudes viris contra os pregoeiros da
mentira e da ilusão. Se deixarmos o Centro abandonado à fúria dos fariseus,
eles o destruirão sem nenhum escrúpulo, sob rajadas de calúnias e perfídias. O
Centro Espírita é a pequena e humilde fortaleza da Verdade na Terra da Mentira.
Tem a obrigação de lutar para que a Verdade prevaleça em toda a sua dignidade.
A
incapacidade humana para assimilar os ensinos de Jesus levou o Cristianismo a
dois extremos que somente Kardec soube rejeitar, estabelecendo o equilíbrio na
balança do bom-senso. Os espíritas não podem oscilar entre o extremo da
arrogância criminosa, geradora de guerras e destruições, e o extremo da
covardia disfarçada em humildade, que sempre cala e tudo cede aos insolentes
agressores. Há um limite para a tolerância, traçado por Jesus em torno da
mulher inerme que os hipócritas queriam apedrejar.
Propagou-se
no meio espírita, através de mensagens mediúnicas emotivas, tendendo a um
masoquismo de cilícios e autopunições, a estranha idéia de que a virilidade só
pertence aos cultores da violência. Voltamos assim ao sistema igrejeiro dos
rebanhos de ovelhinhas inocentes devoradas por lobos famintos sem qualquer
possibilidade de defesa. Entregues a essa idéia derrotista, o meio espírita
abastardou-se a ponto de até mesmo recusar-se a defender a Doutrina aviltada
pela ignorância travestida de bondade e doçura. A falsa imagem do “ Meigo
Nazareno” , que a tudo cedia – comprometendo a sua própria missão – apagou na
mente de adeptos desprevenidos a imagem viril de Jesus empunhando o chicote no
Templo contra vendilhões. Já é tempo de compreendermos que estamos na Terra
para conquistar e defender a dignidade humana, sem nos curvarmos atemorizados
ante as investidas da impostura. Quem não defende a Verdade traída e
conspurcada pela mentira não é digno dela. E quem não é digno da Verdade
entrega-se à mentira. Jesus enfrentou os mentirosos atrevidos, num dos pátios
do Templo como nos revela o Evangelho de João, dizendo-lhes face a face : “Vós
sois do Diabo e vosso pai foi ladrão e assassino desde o princípio “. Duras
palavras, a que os mentirosos quiseram responder com pedradas. Mas Jesus
desapareceu, ensinando-lhes que as pedras da mentira não podem atingir o alvo
da Verdade. Os espíritas seráficos, candidatos apressados a uma angelitude que
ainda estamos longe de alcançar na Terra, não compreendem o sentido desse
trecho evangélico e são capazes de expungi-lo do Evangelho em nome de uma
santidade covarde que Jesus jamais ensinou. A figura evangélica de Jesus é
recortada em traços fortes e viris. Sua coragem de encarnar-se na Terra para
enfrentar os poderes do mundo como homem, sua audácia na condenação dos poderosos
do tempo, sem recorrer a sofismas, sua bravura ao entregar-se para o sacrifício
da cruz para ensinar aos homens a glória de morrer pela Verdade – são lições
que devemos aprender, se quisermos nos fazer dignos de segui-lo.
O
Centro Espírita se entranha naturalmente na comunidade, é parte dela, um órgão
ativo e operante da estrutura social. Por mais humilde e simples que seja, é
uma fonte de consolações, um posto de orientação para os que se aturdem e se
transviam, mãos amigas estendidas na bênção do passe, canal sempre aberto da
caridade e do amor. Mas é também a trincheira serena e vigilante da Verdade, o
tribunal que não condena, mas ajuda e absorve através do esclarecimento
espiritual. Os que buscam a paz e a esperança encontram nele a compreensão que
pacifica o espírito e a razão que justifica a fé nas provas da Verdade. Por
tudo isso a sua posição na comunidade é a de um coração comum aberto a todos e
de uma consciência lúcida a orientar a todos, na permanente doação dos ensinos
e socorros gratuitos.
A
responsabilidade dos dirigentes e colaboradores dessa instituição cristã,
humilde e simples é, entretanto, grandiosa e complexa. A voz dos espíritos soa
dia-e-noite no silêncio dessa concha acústica da Verdade, no murmúrio secreto
das fontes da intuição, advertindo aos que sofrem e aos que gozam quanto a
precariedade das ilusões terrenas e a eternidade das leis da vida no Universo
infinito. Quanto mais simples é o Centro em bens materiais, maior é a sua
riqueza em bens espirituais”.
PIRES, Herculano. O Centro Espírita. São Paulo: Paideia, 1980,
p. 25-34.