As observações feitas
por Allan Kardec na mensagem aos espíritas parisienses por ocasião do Ano Novo em
1862, não ficaram apenas no passado, ao contrário, é atual, e os que não
tiverem preguiça de ler, por ser o artigo um pouco longo, poderão ter um vasto
material para reflexão. Precisamos rever e melhorar posturas e práticas no movimento
espírita brasileiro neste Ano Novo que se inicia. Feliz 2018!
Revista
Espírita Jornal de Estudos Psicológicos
Ano V
Fevereiro de1862 nº 2
Páginas:
58-65
RESPOSTA
DIRIGIDA AOS ESPÍRITAS LIONESES POR OCASIÃO DO ANO-NOVO
Meus
caros irmãos e amigos de Lyon,
Meus
caros irmãos e amigos de Lyon, A mensagem coletiva que houvestes por bem me
enviar pela passagem do Ano-Novo causou-me viva satisfação, provando que
conservastes de mim uma boa recordação. Mas o que mais me alegrou nesse ato
espontâneo foi ter encontrado, entre as numerosas assinaturas que ali figuram,
representantes de quase todos os grupos, porque é um sinal da harmonia que deve
reinar entre eles. Sinto-me feliz por terdes compreendido perfeitamente o
objetivo dessa organização, cujos resultados já podeis apreciar, porquanto
agora vos deve ser evidente que uma sociedade única teria sido quase
impossível.
Agradeço-vos,
meus bons amigos, os votos que formulais; eles me são tanto mais agradáveis
quanto sei que partem do coração, e são estes que Deus ouve. Ficai satisfeitos,
porque ele os acolhe diariamente, dando-me a alegria inaudita no
estabelecimento de uma nova doutrina, de ver aquela a que me devotei crescer e
prosperar, em meus dias, com extraordinária rapidez. Considero como um grande
favor do céu poder testemunhar o bem que ela já fez. Essa certeza, da qual
diariamente recebo os mais tocantes testemunhos, paga-me com juros todas as
penas e fadigas. Não peço a Deus senão uma graça: a de me dar força física
suficiente para ir até o fim de minha tarefa, que está longe de terminar. Mas,
haja o que houver, terei sempre a consolação da certeza de que a semente das
idéias novas, agora espalhadas por toda parte, é imperecível. Mais feliz que
muitos outros, que não trabalharam senão para o futuro, a mim já é dado ver os
primeiros frutos. Só lamento que a exigüidade de meus recursos pessoais não me
tenha permitido pôr em execução os planos que tracei, a fim de que o avanço
ocorresse de maneira ainda mais rápida. No entanto, se em sua sabedoria Deus o
quis de outro modo, legarei esses planos aos meus sucessores que, sem dúvida,
haverão de ser mais felizes. Apesar da penúria de recursos materiais, o
movimento que se opera na opinião pública ultrapassou toda a expectativa.
Crede, meus irmãos, que nisto o vosso exemplo teve influência. Recebei, pois,
nossos cumprimentos pela maneira por que sabeis compreender e praticar a
doutrina. Sei o quanto são grandes as provas que muitos de vós tendes de
suportar; só Deus lhes conhece o termo neste mundo. Mas, também, quanta força
contra a adversidade nos dá a fé no futuro! Oh! lastimai os que acreditam no
nada após a morte, porquanto, para eles, o mal presente não tem compensação. O
incrédulo infeliz é como o doente que não espera nenhuma cura; o espírita, ao
contrário, é aquele que, doente hoje, sabe que amanhã estará bem.
Pedis
que continue com os meus conselhos. Eu os dou com muito gosto aos que crêem
necessitar deles e os reclamam. Mas só a esses. Aos que julgam muito saber e
sentem-se dispensados das lições da experiência, nada direi; apenas desejo que
um dia não se lamentem por haverem sobreestimado as próprias forças. Tal
pretensão, aliás, acusa um sentimento de orgulho, contrário ao verdadeiro
espírito do Espiritismo. Ora, pecando pela base, só por isto provam que se
afastam da verdade. Não sois desse número, meus amigos; aproveito, pois, a
circunstância para vos dirigir algumas palavras, a fim de provar que, de longe
como de perto, sou todo vosso.
No
ponto em que hoje as coisas se acham, e levando-se em conta a marcha do
Espiritismo através dos obstáculos semeados em seu caminho, pode-se dizer que
as principais dificuldades estão vencidas. Ele tomou o seu lugar e assentou-se em
bases que doravante desafiam os esforços de seus adversários. Pergunta-se como
pode ter adversários uma doutrina que nos torna felizes e melhores. Isto é
muito natural. Nos seus primórdios, o estabelecimento das melhores coisas
sempre fere interesses. Não tem sido assim com todas as invenções e descobertas
que revolucionaram a indústria? Não tiveram inimigos obstinados as que hoje são
consideradas como benefícios e das quais não poderíamos nos privar? Toda lei
que reprime abusos não tem contra si os que vivem do abuso? Como queríeis que uma
doutrina, que conduz ao reino da caridade efetiva, não fosse combatida pelos
que vivem do egoísmo? E sabeis o quanto são estes numerosos na Terra. No
princípio esperavam matá-lo pela zombaria; hoje vêem que tal arma é impotente
e, sob o fogo cerrado dos sarcasmos, ele continuou sua rota sem se deter. Não
penseis que se confessarão vencidos. Não; o interesse material é mais tenaz.
Reconhecendo que é uma potência, com a qual agora é preciso contar, vão
desferir ataques mais sérios, mas que só servirão para melhor provar a fraqueza
deles. Uns o atacarão abertamente, em palavras e em ações, e o perseguirão até
na pessoa de seus aderentes, tentando desencorajá-los a força de intrigas,
enquanto outros, subrepticiamente, por vias indiretas, procurarão miná-lo secretamente.
Ficai avisados de que a luta não terminou. Estou prevenido de que tentarão um
supremo esforço; mas não temais: a garantia do sucesso está nesta divisa, que é
a de todos os verdadeiros espíritas: Fora da caridade não há salvação.
Empunhai-a bem alto, porque ela é a cabeça de medusa para os egoístas.
A
tática já posta em ação pelos inimigos dos espíritas, mas que vai ser empregada
com novo ardor, é a de tentar dividi-los, criando sistemas divergentes e
suscitando entre eles a desconfiança e a inveja. Não vos deixeis cair na
armadilha e tende como certo que aquele que procura, seja por que meio for,
romper a boa harmonia, não pode estar animado de boas intenções. Eis por que
vos exorto a guardar a maior prudência na formação dos vossos grupos, não só
para a vossa tranqüilidade, mas no próprio interesse dos vossos trabalhos.
A
natureza dos trabalhos espíritas exige calma e recolhimento. Ora, não há
recolhimento possível se somos distraídos pelas discussões e pela expressão de
sentimentos malévolos. Se houver fraternidade não haverá sentimentos de
malquerença; mas não pode haver fraternidade com egoístas, com ambiciosos e
orgulhosos. Com orgulhosos, que se escandalizam e se melindram por tudo; com
ambiciosos, que se decepcionam quando não têm a supremacia, e com egoístas que
só pensam em si mesmos, a cizânia não tardará a ser introduzida e, com ela, a
dissolução. É o que gostariam os inimigos e é o que tentarão fazer. Se um grupo
quiser estar em condições de ordem, de tranqüilidade, de estabilidade, faz-se
mister que nele reine um sentimento fraternal. Todo grupo que se formar sem ter
por base a caridade efetiva, não terá vitalidade, ao passo que os que se
fundarem segundo o verdadeiro espírito da doutrina olhar-se-ão como membros de
uma mesma família que, embora não podendo viver sob o mesmo teto, moram em
lugares diversos. Entre eles a rivalidade seria uma insensatez; não poderia
existir onde reina a verdadeira caridade, porquanto esta não pode ser entendida
de duas maneiras. Assim, reconhecereis o verdadeiro espírita pela prática da
caridade em pensamentos, palavras e ações; e vos digo que aquele que em sua
alma nutrir sentimentos de animosidade, de rancor, de ódio, de inveja ou de
ciúme, mente a si mesmo se aspira a compreender e a praticar o Espiritismo.
O
egoísmo e o orgulho matam as sociedades particulares, como destroem os povos e
a sociedade em geral. Lede a História e vereis que os povos sucumbem sob a
opressão desses dois mortais inimigos da felicidade dos homens. Quando se
apoiarem nas bases da caridade, serão indissolúveis, porque estarão em paz
entre si e com eles próprios, cada um respeitando os direitos e os bens dos
vizinhos. Eis a era nova predita, da qual o Espiritismo é o precursor, e para a
qual todo espírita deve trabalhar, cada um em sua esfera de atividade. É uma
tarefa que lhes compete e da qual serão recompensados conforme a maneira por
que a tenham realizado, pois Deus saberá distinguir os que, no Espiritismo, não
buscaram senão a sua satisfação pessoal, daqueles que ao mesmo tempo
trabalharam pela felicidade de seus irmãos.
Devo
ainda vos chamar a atenção para outra tática de nossos adversários: a de
procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro
objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de
sua competência e que poderiam, com toda razão, despertar susceptibilidades e
desconfianças. Também não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai
cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto disser respeito à política e às
questões irritantes; nesse caso, as discussões não levarão a nada e apenas
suscitarão embaraços, enquanto ninguém questionará a moral, quando ela for boa.
Procurai, no Espiritismo, aquilo que vos pode melhorar; eis o essencial. Quando
os homens forem melhores, as reformas sociais verdadeiramente úteis serão uma
conseqüência natural. Trabalhando pelo progresso moral, assentareis os
verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, deixando a Deus o
cuidado de fazer que as coisas cheguem no devido tempo. No próprio interesse do
Espiritismo, que ainda é jovem, mas que amadurece depressa, deveis opor uma
firmeza inabalável aos que buscarem vos arrastar por um caminho perigoso.
Visando
a desacreditar o Espiritismo, pretendem alguns que ele vai destruir a religião.
Sabeis que é exatamente o contrário, pois a maioria de vós, que mal
acreditáveis em Deus e na alma, agora crêem; quem não sabia o que era orar, ora
com fervor; quem não mais punha os pés nas igrejas, a elas vão com
recolhimento. Aliás, se a religião devesse ser destruída pelo Espiritismo, é
que ela seria destrutível e o Espiritismo mais poderoso. Afirmá-lo seria falta
de habilidade, porquanto seria confessar a fraqueza de uma e a força do outro.
O Espiritismo é uma doutrina moral que fortalece os sentimentos religiosos em
geral e se aplica a todas as religiões; é de todas, e não pertence a nenhuma em
particular. Por isso não aconselha a ninguém que mude de religião. Deixa a cada
um a liberdade de adorar Deus à sua maneira e de observar as práticas ditadas
pela sua consciência, pois Deus leva mais em conta a intenção que o fato. Ide,
pois, cada um, ao templo do vosso culto, e assim provareis que vos caluniam,
quando vos acusarem de impiedade.
Na
impossibilidade material em que me acho de manter relações com todos os grupos,
pedi a um de vossos confrades que me representasse especialmente em Lyon, como
o fiz alhures: é o Sr. Villon, cujo zelo e devotamento conheceis tão bem quanto
a pureza de seus sentimentos. Além disso, sua posição independente lhe dá mais
folga para a tarefa de que se quer encarregar; tarefa pesada, mas ante a qual
não recuará. O grupo por ele formado em sua casa o foi sob os meus auspícios e
conforme minhas instruções, quando de minha última viagem. Ali encontrareis
excelentes conselhos e salutares exemplos. Verei com viva satisfação todos os
que me honram com a sua confiança a ele se ligarem, como a um centro comum. Se
alguns quiserem fazer um grupo à parte, evitai olhá-los com aversão; e, se vos
atirarem pedras, não as recolhais, nem as devolvais: entre eles e vós Deus será
o juiz dos sentimentos de cada um. Que aqueles que se julgam os únicos certos o
provem por maior caridade e maior abnegação, porquanto a caridade não poderia
estar do lado daquele que não cumpre o primeiro preceito da doutrina. Se
estiverdes em dúvida, fazei sempre o bem: os erros do espírito sempre pesam
menos na balança de Deus que os erros do coração.
Repetirei
aqui o que já disse em outras oportunidades: em caso de divergência de opinião,
o meio fácil de sair da incerteza é ver qual a opinião que reúne o maior número
de partidários, pois há nas massas um bom-senso inato que não se deixa enganar.
O erro só seduz alguns espíritos enceguecidos pelo amor-próprio e por um falso
julgamento, mas a verdade acaba sempre vitoriosa. Tende certeza de que o erro
deserta das fileiras que se esclarecem, e que há uma obstinação irracional em
crer que um só tenha razão contra todos. Se os princípios que professo só
encontrassem alguns ecos isolados e fossem repelidos pela opinião geral, eu
seria o primeiro a reconhecer que me havia enganado. Mas vendo crescer
incessantemente o número dos aderentes, em todas as classes da sociedade e em
todos os países do mundo, devo acreditar na solidez das bases sobre as quais
repousam. Eis por que vos digo com toda a segurança: marchai firmemente na via
que vos é traçada; dizei aos vossos antagonistas que, se quiserem que os
sigais, que vos ofereçam uma doutrina mais consoladora, mais clara, mais
inteligível, que melhor satisfaça à razão e que, ao mesmo tempo, seja uma
garantia para a ordem social. Pela vossa união, frustrareis os cálculos dos que
vos quisessem dividir. Provai, enfim, pelo vosso exemplo, que a doutrina nos
torna mais moderados, mais brandos, mais pacientes e mais indulgentes. Esta é a
melhor resposta a ser dada aos detratores, ao mesmo tempo que a vista dos
resultados benéficos é o mais poderoso meio de propaganda.
Eis,
meus amigos, os conselhos que vos dou e aos quais acrescento os meus votos de
Boas-Festas para o ano que começa. Não sei que provas Deus nos destina este
ano, mas sei que, sejam quais forem, as suportarei com firmeza e resignação,
pois sabeis, para vós, como para o soldado, que a recompensa é proporcional à
coragem.
Quanto
ao Espiritismo, pelo qual mais vos interessais que por vós mesmos, e cujo
progresso, pela minha posição, posso julgar melhor que ninguém, sinto-me feliz
em vos dizer que o ano se inicia sob os mais favoráveis auspícios e, sem
dúvida, verá crescer o número de adeptos numa proporção impossível de ser
prevista. Mais alguns anos como estes que se passaram e o Espiritismo terá
arrebanhado três quartas partes da população.
Deixai
que vos cite um fato entre milhares. Num Departamento vizinho de Paris existe
uma pequena cidade onde o Espiritismo penetrou apenas há seis meses. Em poucas
semanas tomou um desenvolvimento considerável; uma oposição formidável foi logo
organizada contra os seus partidários, ameaçando até mesmo os seus interesses
privados. Eles enfrentaram tudo com uma coragem e um desinteresse dignos dos
maiores elogios; entregaram-se à Providência e a Providência não lhes faltou.
Essa cidade conta uma população operária numerosa, em cujo meio as idéias
espíritas, graças à oposição que fizeram, manifestam-se rapidamente. Ora, um
fato digno de nota é que as mulheres e as jovens, em vez de aguardarem os
habituais presentes do Ano-Novo, preferiram adquirir as obras necessárias à sua
instrução, de modo que, só para essa cidade, encarregou-se um livreiro de as
expedir às centenas. Não é prodigioso ver simples operários reservarem suas
economias para comprar livros de moral e de filosofia, em lugar de romances e
bugigangas? homens preferindo esta leitura às alegrias ruidosas e degradantes
dos cabarés? Ah! é que aqueles homens e aquelas mulheres, sofredores como vós,
agora compreendem que não é aqui que se realiza a sua sorte; ergue-se a cortina
e eles entrevêem os esplêndidos horizontes do futuro. Esta cidadezinha é
Chauny, no Departamento do Aisne. Novos filhos na grande família, eles vos
saúdam, companheiros de Lyon, como seus irmãos mais velhos, formando, desde
agora, um dos elos da cadeia espiritual que já une Paris, Lyon, Metz, Sens,
Bordeaux e outras, e que em breve ligará todas as cidades do mundo num
sentimento de mútua confraternidade; porque em toda parte o Espiritismo lançou
sementes fecundas e seus filhos se dão as mãos por cima das barreiras dos
preconceitos de seitas, castas e nacionalidades.
Vosso
dedicado irmão e amigo,
Allan
Kardec.
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